sábado, 30 de agosto de 2008

Despida

Há dias que escutava um bramido. Era clamor de alma. Oriundo do recesso da criatura. Era fera querendo nascer. Rasgou um pedaço da carne pequeno a princípio. Vislumbrou uma casca grossa, viscosa, difícil crer.


E a incisão foi aumentando. Primeiro foi impulso. Depois impaciência, curiosidade, saber. Resoluta abriu um talho enorme arrancando o verniz, vulga polidez, que cobria seu ser. Caíram às máscaras. Sem couraça, sem proteção. Somente seu interior escancarado a quem ousasse ver.


No início causou choque, asco não havia precedentes para compreender sua alma revelada, sua fera liberta. Por fim, resignados a aceitaram. Contudo jamais abarcaram toda a complexidade e riqueza submersa na simples aparência, cuja única função era ofuscar seu verdadeiro ser.

Redenção


Terra. Menino. Sertão. Aridez. Alma. Injustiça. Dor. Sangue. Vão...

O sertão não tem clemência, não! Menino vira homem, vira cão. É dor que se aplaca com sangue, lava chão. Chuva no sertão? Tem não. O que lava a terra é sangue do sertanejo bão.

A aridez do sertão resseca tudo muito mais do que chão, seca goela, mente e coração. No sertão tudo é contido, não se expande, não.

Sertanejo não proseia, nem divaga, tem tempo pra isso não; a secura e a labuta consomem seu jovem e só deixa o velho, cão. E se camisa seca no vento seco e se marelô, bora vinga o irmão!


Sertão que ceifa tudo: corta vida, esperança e coração.


Menino que vira homem assume sua sina, sem saber o que passou. Ontem se riu desajeitado, arreganhô os dente porque no sertão ninguém ensinou a se ri, só dor. E se veste do homem que sonhô, bota chapéu ta pronto. Caminha sereno. Vai cumprir seu destino. Cão seco, só osso, se encolhe pressentindo, porque animal ali não difere, não. Só do andar.


Estampido. Grito. Dor. Sangue que lava a terra em clamor. Homem vê desgraça feita.
Estampido. Choro. Liberdade, vê os anjos do senhor.


Mãe, mulher forte talhada nas agruras do sertão chora choro seco, sem lágrima, só grunhe como bicho cheio de dor. Abraça, embala o corpo sem vida, lambe a cria, quer insuflar vida, pode aceitar essa morte não. Era di si o moço, mas o menino não!

Moço-menino põe trouxa nas costas e sai num guenta mais aquilo não. Que si ri, beija boca madura e vê di perto gravura do livro do irmão-mártir. E também porque da vida tudo que conhece é aridez, sofrimento, sangue e dor. Devi ti tê mais na vida do que esse sertão que resseca e ceifa vidas, indolor. Morte transcende: vida!

Segue estrada, come poeira sem rumo ou direção. Para cansado e se põe abestado diante do espetáculo de cor. Eita que nunca se viu carrossel de fitas, é saia de moça, mas num sabe dá nome não. E boca aberta, escancarada, mas não é careta. É riso. Primeiro meio rouco e engasgado, mas depois puro e cristalino. Os olhos brilham. Chegô. O peito rebenta de outras coisas que inda não sabe dá nome, mas já gosta do sabor.


Moça linda. Beleza agreste. Faceira atrai. Moço-menino vai.
Terra. Homem. Sertão. Perdas. Sangue. Clemência. Busca. Moça. Riso.Vida.

Redenção: quebra o ciclo, engole o sertão. Equilíbrio? Não! É apenas uma vereda neste mundo cão.

terça-feira, 29 de julho de 2008

O Vôo




___Eu preciso ir... Desculpe não da mais... ___ e foi saindo porta a fora sem se incomodar com o olhar de choque do homem ___Isto aqui está me matando!


___Vai para onde? Por quê? O que há de errado?!


___Tudo... nada. Não da mais! ___ e se foi sem um único olhar para trás.

Sabia exatamente aonde ir. Foi apressando o passo, logo estava correndo. Queria sua liberdade, arrancou os sapatos queria imprimir um ritmo mais veloz. Soltou os cabelos cor de ébano, o vento batia no rosto a sensação de sufocamento ia desaparecendo a medida que avançava rumo a seu destino.


Não se importava com os pedregulhos a lhe cortarem os pés, tampouco os arbustos a lhe arranhar a face, braços e pernas. E embora soubesse que ninguém iria compreender, por muito tempo ela também não compreendera o motivo daquela angústia, a qual nenhuma bala mágica conseguia aliviar. Finalmente entendera... não tinha mais dúvida de que estava fazendo o que era certo.


Por um longo tempo ficou a contemplar o cume do penhasco do alto da janela do seu apartamento. E a cada vez que olhava para aquele cume, mais as paredes, pessoas e suas regras a oprimiam, não importava o tamanho físico, quando tolhiam seu espaço interior... E hoje quando ouviu aquela conversa esnobe e fútil viu extasiada os grilhões se romperem. Não aguentava mais aquela gaiola de ouro, porque apesar de todo luxo e conforto, não passava disso.


Chegou ao cume, sua respiração ofegante, as narinas fremiam, o corpo todo orvalhado de suor, abriu os braços tombou a cabeça para trás e inspirou lenta e profundamente, sentindo cada molécula de ar penetrando por todos os seus poros. Era o momento, o seu momento olhou para a imensidão azul e pulou...


Primeiro planou ao sabor do vento, depois esperou o choque do corpo contra a água... Súbito suas mãos foram se alando, seu rosto se alongando e o corpo se transfundindo...


E quando o rapaz chegou ao cume contemplou o vôo soberano de uma águia a cortar o céu majestosamente, não havia o menor sinal da mulher...

A Rachadura


____Você viu? __perguntou a mulher.

____Viu o quê criatura!___respondeu o marido, com ar enfastiado, sem desviar os olhos da TV.

____A rachadura... ___tornou a mulher em um tom ao mesmo tempo sofrido e cansado.

____Ah... mulher me deixe ver a TV em paz, não percebe que eu estou cansado, trabalhei o dia inteiro... Só quero um pouco de sossego antes de deitar... ____ e continuou a resmungar, porém a mulher já não mais estava ali para ouvir suas lamúrias... Se perdera na fenda da desilusão...

Quando apareceu a primeira fissura há uns quatro ou cinco anos, não saberia precisar, mas o que realmente importava era que a fenda aumentava consideravelmente até a proporção de que um simples suspiro fizesse tudo ruir...

O começo fora tão belo, excitante, tudo funcionava perfeitamente, havia carinho, respeito, amor, desejo, mas eis que surge a primeira frincha no reino da felicidade, a primeira discórdia, a primeira discussão. Então como qualquer casa que por mais bem alicerçada que seja, quando passa a ter sua estrutura abalada, pede reparos urgentes, antes que seja tarde demais.

Embora ela fizesse sua parte, o interstício só aumentava, mais discordâncias, ausência, desafeto, traição e a pequena rachadura se transforma em cratera. E como cratera divide-se; o que era uno torna-se dois, lados opostos, disputas e batalhas... A esposa vê que rachadura não tem mais conserto, sabe que terá que demolir para reconstruir.

Ele, o marido, segue alheio, porque tem tudo que precisa: sua cerveja gelada, sua TV e a mulher a lhe servir.

____Você viu? ___perguntou a outra mulher.

____Viu o quê? ___resmungou mal humorado ____Já não falei para você me deixar em paz!

Não percebe que já rachou, remendou e está a rachar novamente... com outra. Não entende o porquê de tantas cobranças. Dá um duro danado, trabalha como um louco, quase não tem tempo para descansar. Tudo que deseja é ver sua TV, tomar sua cervejinha gelada e quando for dormir ter a mulher ali a lhe esperar, então cumprir seu dever de marido e repousar em paz. Pois amanhã seu dia será árduo...

Cada um sabe a dor e delícia de ser o que é



Sabe o que mais me seduziu nesta história?! As possibilidades... infinitas. Escrever uma espécie de diário na qual as únicas exceções que farei serão sobre sonhos eróticos, não quero um diário de Anaïs Nin e os pensamentos perversos, beirando à sociopatia, pois tampouco quero ser uma versão feminina do Marquês de Sade, não que em ambos os casos não os tenha, os tenho em profusão. Mas tão somente quero deixá-los em seus recônditos abissais.

Além das possibilidades outro atrativo é a idéia quase subversiva de tornar público o que normalmente se guarda a sete chaves. E para finalizar a termino esta com uma citação do conto Alienista de Machado de Assis, que define bem a intenção e a extensão dessa empreitada...

“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. Concluía o alienista que o normal e exemplar era o desequilíbrio e que se deveriam considerar como patológicos os casos em que houvesse equilíbrio ininterrupto das faculdades mentais.”